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O espaço da filosofia no direito e a herança da Filosofia Política antiga e medieval – Primeira parte da entrevista com o professor Henrique Simon.

A certa altura do século XVII, o moralista francês François de La Rochefoucuald enunciava que “a filosofia facilmente vence os males passados e futuros. Mas os males presentes a vencem”. A máxima moral do anti-filósofo acaba por refletir a inquietação de uma parcela diminuta de estudantes de direito que ainda buscam um lampejo de reflexão crítica nas academias jurídicas brasileiras. Afinal de contas, qual seria a utilidade do pensamento filosófico em uma área em que a maior parte de seus atores só vê valor no conhecimento que os fará ser aprovado em um patético concurso público? Estaria a filosofia vencida pelos males da presente mediocridade da nossa cultura jurídica?

Munido dessas inquietações que me acompanharam durante toda a minha graduação, resolvi convidar o meu professor de Filosofia do Direito, Henrique Simon, graduado, mestrado e doutorado em direito pela Universidade de Brasília, professor titular do Ceub, advogado de carreira, etc. etc. etc., para uma conversa sobre o lugar da filosofia no direito e também sobre alguns assuntos filosóficos de meu interesse – quem achar desinteressante, que arranje a própria entrevista.

Devido à longa extensão da entrevista (mais de 1 hora de material bruto), o texto será dividido em partes – talvez duas, talvez três, ainda não me decidi... o futuro à Deus pertence, caro leitor. De todo modo, essa primeira parte tratará da filosofia como ferramenta de reflexão e como campo de estudo dentro do direito, além de adentrar em discussões sobre a filosofia clássica e suas implicações no pensamento jurídico ao longo dos séculos. A próxima parte, a ser publicada futuramente, avançará um milênio e alguns séculos no tempo para tratar sobre Hans Kelsen - autor que acompanhou o entrevistado durante toda a sua trajetória acadêmica - e as discussões que o permeiam. A entrevista finalizará com reflexões sobre os problemas filosófico-jurídicos da atualidade e com um bate-bola de provocações que, segundo as más línguas, eu copiei da Marília Gabriela. Na verdade, não nego, confesso o defeito de copista, afinal, nas palavras de La Rochefoucauld, “só confessamos os pequenos defeitos para convencer de que não temos os grandes”. Uma boa leitura a todos.


Como você enxerga o papel da teoria filosófica em uma área tão instrumentalista e prática quanto o direito?


Na minha perspectiva, você tem uma questão, primeiro, de tradição jurídica, em que a Filosofia sempre fez parte da formação do jurista, tanto na ação individual como no papel do jurista na compreensão do fenômeno. Quando você pega a Idade Média, você tem o Trivium e o Quadrivium, que são disciplinas filosóficas preparatórias para a capacidade de compreensão do direito. Até porque ele não era um fenômeno, digamos, ainda dogmatizado e muito menos positivado, no sentido de uma legislação racional que pode ser, senão a única, pelo menos a principal referência para você extrair conteúdos normativos. Então, isso forma a cultura jurídica... e mistura a cultura jurídica também com a cultura social. Grandes humanistas também eram juristas e acabavam estudando o direito, principalmente a tradição do direito romano. Kant tem isso, Hegel tem isso... e oposto também, grandes juristas também eram humanistas. Bodin, antes de tudo, era um jurista... E isso decorre do processo de formação, então não acho que é uma contradição o ensino da filosofia do direito com o ensino para formar burocratas. É uma opinião um pouco polêmica, o pessoal gosta de dizer que “ah, o curso de direito não é para formar tecnocratas”. Sim, é para formar tecnocratas, é para formar quem vai lidar com a estrutura do Estado. Ainda mais quando a gente tem como principal fonte do direito a atividade estatal. Então, é claro que é pra formar tecnocratas. O tecnocrata não é exatamente um tecnicista, que só vai aplicar conteúdos pré-estabelecidos formalmente e subsunções simples, como, por exemplo, um técnico administrativo. Não é isso que ele vai fazer. Então, essa é uma formação fundamental para você entender exatamente a dinâmica e a riqueza do fenômeno jurídico: ele é dinâmico, ele é vivo, ele não é fechado em termos de conteúdo, ele tem sua complexidade... e eu não posso lidar com complexidades se eu não tenho ferramentas complexas. Então, o ensino, na minha opinião, da filosofia do direito é fundamental para ganhar essa estrutura de racionalidade e compreensão de complexidade. Mas, isso não pode se transformar na pretensão de um ‘jurista-humanista’, como se a gente estivesse nos séculos XVI e XVII - o humanista é aquele que estuda muito e sabe muito e, portanto, tem as ‘condições individuais do saber’. O jurista tem que saber lidar com a complexidade, exatamente para trabalhar de forma multidisciplinar... jurista não resolve os problemas do serviço social, da psicologia... não resolve os problemas da filosofia, mesmo que ele seja um bom filósofo... mas ele tem que saber lidar com essa complexidade para saber como transformar isso em atividade prática, políticas públicas, atuação técnica como advogado... por exemplo, como é que eu lido com fenômenos climáticos em uma judicialização da política climática se eu não tenho capacidade de compreender a dinâmica e a complexidade do fenômeno, seja nos aspectos científicos, seja nos aspectos de posição de filosofia política?... Então, creio que ainda é fundamental para lidar com complexidades.


Falando agora sobre a produção filosófica na academia, você acha que ainda existe espaço para a pesquisa em filosofia nos cursos de direito?


Tem, claro que tem. Ainda que a gente pense em uma espécie de filosofia do direito ‘pura’... “ah, eu vou só trabalhar com questões teóricas, abstratas, que fundamentem a racionalidade jurídica”, mesmo assim ainda tem espaço. Você tem aí o pessoal da lógica jurídica; tem ainda, às vezes, uma tentativa de retorno a uma metafísica jurídica; tem o próprio problema da hermenêutica como teoria da argumentação... Ainda que você tenha uma espécie de ancoragem em fenômenos pragmáticos, ainda tem uma base que é bastante teórica, abstrata... vide a teoria da argumentação do Alexy, a própria teoria dos direitos fundamentais, as ideias do Dworkin, que, ainda que lide com exemplos, depende primeiro de uma espécie de filosofia política geral, abstrata... Enfim, há essa necessidade de lidar com diferentes teses e métodos filosóficos que vão levar à compreensão do direito. Então, tem sim espaço. Mas, de novo, é um espaço de fundamento, um espaço crítico. Não é mais um espaço de resolução em abstrato. O iluminismo, nesse sentido, me parece que acabou. Mas, é possível, sim, pensar em possibilidades, limites e propostas de controle de racionalidade, de organicidade normativa e críticas de processos de poder... porque, no final das contas, tudo isso nos serve para identificar o funcionamento da atividade de poder. Uma atividade jurídica é uma atividade de poder. Uma atividade burocrática é uma atividade de Estado e é uma atividade de decisão. Então, tem espaço. Além desse espaço, é difícil, hoje, você falar em Direito Constitucional que não tenha filosofia do direito. Mesmo que eu pretenda ser puramente técnico-dogmático, eu tenho uma filosofia do direito por trás. Aí, de novo, o Dworkin: sempre tem uma filosofia do direito que forma o meu posicionamento a respeito do direito. Trabalhando isso de forma consciente, não parece possível o direito constitucional atual sem o enraizamento em alguma teoria filosófica - principalmente de matiz política, mas em alguma teoria filosófica. Então, o direito constitucional é eminentemente dependente da filosofia do direito, hoje.


Então você não vê de forma alguma como sendo um campo ultrapassado?


Não, de forma alguma. Pelo contrário, parece que ele voltou à moda. Por exemplo, pensa na jurisdição constitucional... na medida em que os tribunais tem que criar teses teóricas que fundamentam a sua própria percepção do direito positivo, essas são peças de filosofia... e conscientemente filosóficas.


Entrando agora na filosofia propriamente dita, uma pergunta que eu sempre quis fazer para um professor de filosofia do direito e advogado: por que nós damos tanto valor para os filósofos clássicos (e.g. Sócrates, Platão, Aristóteles, Cícero, etc.), mas não damos tanto valor para os sofistas? A nossa área não dialoga muito mais com os sofistas do que com os filósofos?


Sem dúvida. Eu acho que tem algumas questões aí que são práticas. O que se conhece dos sofistas é por comentários e compilações, enquanto que em relação aos filósofos ditos clássicos se tem muitos mais recursos – à exceção de Sócrates, claro -, um corpo teórico documentado mais amplo, mais estável, textos que são muito mais orgânicos e que sobreviveram. Claro que Platão e Aristóteles são filósofos grandiosos, mas, sem dúvida nenhuma, muitos autores e muitas discussões da época deles foram perdidos. Então, provavelmente, vários outros textos e vários outros filósofos que talvez sejam tratados como menores rivalizavam com eles à época. E os sofistas, sem dúvidas, sofreram com isso. Então você tem esse problema da fonte material e a sistematização dessas fontes. Além disso, você tem todo o problema da tradição que se torna metafísica no Ocidente. Quer dizer, Platão e Aristóteles permitem a ciência, a filosofia e a teologia medievais, a nossa concepção de Verdade... os sofistas não permitem isso. Então, os sofistas também, à sua maneira, seriam um freio para esse desenvolvimento de concepção do conhecimento. Por mais que nós sejamos advogados, a gente não confessa por aí que a gente mente... nós escondemos que a gente cria sofismas. Então, a gente sempre precisa de uma perspectiva coerente de Justiça, de uma maneira sistemática e isso, obviamente, impede a pura e simples adoção dos sofistas. Agora, por outro lado, os sofistas são interessantíssimos, a partir do próprio Karl Popper – que não tem nada de sofista -, quando a gente pensa na questão do questionamento da Verdade como função política. Então, não é à toa que o Popper pega alguma linha dessas grandes tradições das narrativas universais – Platão, Aristóteles, Hegel e Marx – e vê isso como um problema para a democracia... porque se nós temos teses claras sobre a Verdade Social, elas serão realizadas... eu não tenho espaço para divergências, discordâncias e tampouco para a falibilidade da racionalidade. E, de uma maneira interessante, os sofistas mostram isso na Grécia Antiga. Então, sobre essa valorização dos sofistas, eu concordo, acho que deveria ter uma valorização maior, mas, de uma perspectiva em que a gente voltasse a estudar a filosofia política pensando não só em uma teoria abstrata da Justiça e das formas de Governo, mas como isso se dava no mundo antigo. Quando você pega Grécia e Roma, eles são claramente anti-platônicos: “eu não quero um modelo absoluto de Justiça”. A Justiça é material, vivenciada, social e deriva do equilíbrio da composição social. E aí entra o papel dos sofistas: se eu não tenho uma Verdade, todos podem participar. Se eu não tenho uma pré-definição moral, a decisão é política. Então os sofistas me parecem uma boa ferramenta para pensar como se dá o problema da Verdade no processo político... e isso acaba tendo uma função democrática.


Nesse sentido, vamos pegar A República como exemplo: um Trasímaco não dialoga muito mais com o contexto contemporâneo do que um Platão?


Em certa medida, sim. A questão é se eu posso transformar isso em modelo. Como crítica, tudo bem, mas os Sofistas – um Trasímaco da vida – não me dá um modelo pra pensar. Talvez a gente possa conjugar com isso uma história institucional efetiva, se perguntando “o que era a Constituição de Atenas?”, “o que era a Constituição da Roma republicana?”.


Mas para um advogado nos dias de hoje, por exemplo, isso importa?


Importa pro Direito Público, por exemplo. Hoje você tem uma crise clara entre os três poderes. Eles estão brigando entre si. Então, essa é uma crise de concepção política, é uma crise de legitimidade política e é uma crise de limite de racionalidade jurídica. Importa para o advogado entender qual é o limite de legitimidade de uma Suprema Corte. Importa para o advogado ter ferramentas de compreensão da legitimidade da Corte para poder enfrentá-la, não só para desfazê-la... não como nesse discurso que hoje é da extrema direita, mas existe um problema de legitimidade das Cortes Constitucionais e é preciso pensar sobre isso. Então, eu preciso de ferramentas que me dêem exemplos de como isso funciona e por que foi estruturado dessa maneira. Em termos filosóficos, os sofistas são uma ferramenta pra isso. Mas, acho que eles precisam vir com a conjugação da análise histórico-institucional, que é uma coisa que a gente perdeu. Eu acho que junto com a filosofia, falta um cuidado maior com a história do direito, principalmente a história política.


Ainda falando sobre os antigos, de onde você acha que vem essa predileção por esse pensamento – usando um termo do Nietzsche – “gregário” (platônico e aristotélico) e pela filosofia cristã? O quanto que essas visões de mundo ainda contribuem para a formação do imaginário jurídico contemporâneo?


Essa uma questão que traz de novo uma opinião pessoal sobre essa relação que precisa ser retomada entre história e filosofia. O pensamento do Platão e do Aristóteles tem uma relação com a comunidade – um elemento tipicamente “gregário”. Quando a gente pensa em uma sociedade pré-moderna, esta é uma sociedade face-a-face, em que eu sei quem são os meus pares. Quer dizer, como é que um grego se apresenta? Se apresenta pelo seu nome, nome do seu pai e a cidade de onde ele veio. Ou seja, “eu pertenço a polis”. Você pega o Sócrates, no Críton, quando ele vai ser convencido de fugir da prisão, ele fala: “Eu pertenço a polis. Eu sou o que eu sou pela polis”...


Se você pega a Ilíada e a Odisséia, são versos e mais versos de um personagem narrando a própria história...


Exatamente. Então, a sociedade pré-moderna é uma sociedade em que a relação entre direito e dever coloca em primeiro lugar o Dever, que me dá uma posição, e essa posição, então, me dá o Direito. Você vê isso no diálogo de Sócrates com Críton, você vê como esse é o problema de Antígona... Antígona não reivindica uma liberdade de enterrar o irmão, ela reivindica o Dever de enterrar o irmão. Ela não tem opção, e é por isso que ela é uma heroína, porque ela realiza o Dever apesar do seu medo, apesar das vicissitudes. Então, é uma sociedade do Dever e é uma sociedade da desigualdade: a minha posição é determinada pela comunidade. A igualdade em Aristóteles existe para o cidadão livre. O próprio Aristóteles não era igual em Atenas, pois ele era meteco. Nessa sociedade, mulheres são inferiores, escravos são inferiores e assim por diante... então, é uma sociedade da diferença e que, portanto, se organiza com base na coletividade e não no indivíduo. Como é que o Rei-filósofo de Platão não se transforma em um tirano? Ele sabe a verdade, então ele governa pela Verdade, não pela subjetividade... então, ele não está alterando como a comunidade deve ser. Pelo contrário, ele está mantendo. Em Roma, você também tem a tensão entre Patrícios e Plebeus, a ideia de cidadania universal romana. Então, tudo isso são os elementos históricos sobre os quais os filósofos estão pensando. O cristianismo vai manter isso, primeiro para as comunidades locais e, segundo, transformando o ser humano em uma grande comunidade. A comunidade universal dos cristãos é como se fosse uma grande comunidade material, vide a Cidade de Deus, do Santo Agostinho: todos devem ser cristãos, mas é uma comunidade material, de valores. E eu posso pensar nisso a partir da política também. Você pega Agostinho e São Tomás de Aquino, eles estão pensando principalmente no Império... seja o Império Romano que está se esfacelando, seja o Império Romano como imaginário medieval, seja o Sacro-Império Romano-Germânico tentando recuperar esse ideal. Então a Filosofia Política, nessas sociedades, visa à questão da Ordem: como eu estabeleço a Ordem Natural da vida social? Claro que o pensamento é gregário. Quem rompe com isso talvez tenha sido, primeiro, o Hobbes com a ideia de Estado de Natureza... pois como um sujeito [o Hobbes] que viveu a Guerra Civil e foi morar na França para fugir dessa guerra, ele viu a dissolução dessa comunidade. O problema do Hobbes é ‘como recompor essa comunidade?’. E, para ele, essa recomposição só pode ser de cima para baixo, pela autoridade. A partir daí a gente pode pensar o indivíduo em termos filosóficos. Locke vai falar: “bom, Hobbes, então se está todo mundo em um Estado de Natureza, deixa eu ver essa condição inicial do indivíduo, antes de colocar ele simplesmente como aquele que age estrategicamente pelo medo”... e aí eu posso inverter, eu posso pensar no indivíduo. Esse é problema do constitucionalismo moderno. Joga agora para o processo de formação dos Estados Unidos: uma sociedade que pega grupos que foram viver lá para manter as suas formas de vida; indivíduos desenraizados que estão no processo de transformação econômica; a fuga de Estados fortes que estão perseguindo suas formas de vida... eis aí um contexto que vai trabalhar uma tensão entre Locke e Rousseau. A Filosofia Política, então, se volta para o elemento institucional e cria essa tensão que é típica do direito constitucional a partir do liberalismo inglês: o indivíduo e a comunidade. E esse elemento gregário [a comunidade] está sempre presente, pois ele é a condição de pensar a forma de governo e, ao mesmo tempo, a condição de pensar a legitimidade... só que ele não é mais o único, agora eu tenho que pensar o sujeito como agente da própria história. A busca da felicidade americana é um pouco dos dois: o Estado não a determina, eu a busco pela minha comunidade, mas, ao mesmo tempo, eu sou livre e posso me desvincular dessa comunidade e buscar individualmente a minha felicidade. Isso não é mais papel do Estado, eu inverto a lógica... mas, a tensão continua lá.


Fim da primeira parte. A segunda parte será publicada em 21/04/2025.

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