Os problemas filosóficos do direito contemporâneo e algumas provocações – Terceira e última parte da entrevista com o professor Henrique Simon
- Luca Zulato
- há 4 dias
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Nota: o texto a seguir é a continuação da entrevista publicada no dia 05/05/2025, sob o título “Kelsen: o mais odiado dos filósofos do direito? – Segunda parte da entrevista com o professor Henrique Simon”.
Chegando ao final da entrevista, uma pergunta simples com uma resposta provavelmente complexa: quais você acha que são os principais problemas filosóficos a serem debatidos no cenário jurídico contemporâneo?
Acho que são esses que a gente acabou falando. Primeiro, uma compreensão da natureza da decisão jurisdicional: se ela é uma natureza argumentativa, de inferência, com processos de silogismos controláveis, ou se ela tem, de fato, um ponto zero que é a pura decisão... pura decisão no sentido de ser uma escolha que não tem como justificar... alguém tem que decidir e isso nunca gerará um acordo. Outro ponto é, dentro dessa lógica, se perguntar qual é o papel de uma corte constitucional. Como ela exerce esse papel de controle do exercício político, de racionalidade e, ao mesmo tempo, de legitimidade. A gente pensa muito na Corte Constitucional como algo preciso, que é uma garantia da democracia, que é decorrência do sistema, mas isso não é verdade... falta aqui a gente pensar, por exemplo: Por quê que o Canadá permite uma suspensão da eficácia de uma Corte Constitucional?; Por que a Inglaterra não desenvolveu um controle material de atos do legislativo?; Por que a Holanda proibiu objetivamente que o judiciário negasse vigência à lei ao argumento de inconstitucionalidade?... Então, precisamos pensar isso seriamente. O terceiro ponto seria: como a gente lida com limites de legitimidade? Nós podemos trabalhar a Corte Constitucional e o Legislativo com a mesma base de legitimidade? A racionalidade é a base de legitimidade do Judiciário, mas não é do Legislativo? A decisão política como preferência majoritária, que não precisa ser fundamentada racionalmente – pelo menos não no todo – é muito diferente da decisão constitucional? Pois é justamente com essas perguntas que a gente pensa os limites do Poder. Então, a gente precisa repensar a legitimidade...
Parece que o que você está dizendo é que o Direito não chegou ao século XXI, ainda. Estamos presos no século XX?
É difícil dizer isso, porque essa é a condição do século XXI, na verdade... o que talvez possa ser dito é que a gente não superou a tensão que era típica da transição do século XIX para o século XX. Então, a condição do século XXI talvez seja o retorno de um problema que ficou escondido, uma espécie de trauma – que volta com uma catarse, ou algo assim - não resolvido. Se você pegar o começo dos anos 2000, falava-se tranquilamente de ‘sociedade pós-nacional’. E é claro que com uma sociedade pós-nacional, é possível pensar todos esses elementos pós-positivistas, pois se exclui a lógica do Estado, da decisão política... e a lógica pós-nacional precisa ser uma lógica de integração de diversas racionalidades... aí nós teríamos um elemento de uma racionalidade, digamos, mais universal. Porém, hoje em dia, tudo que você não pode dizer é que o nacionalismo está morto. Então, esse problema volta... E não me parece que autores como Alexy, Dworking, etc. me dêem respostas para esse retorno do nacionalismo. Curiosamente, o Kelsen é o cara que trabalha o problema da pluralidade de valores em razão dos nacionalismos europeus.
Perfeito... a entrevista propriamente dita acabou, mas eu pensei aqui em fazer uma espécie de bate-bola, com provocações rápidas...
Tipo a Marília Gabriela?
Exatamente, a inspiração é justamente essa. Mas, aqui você pode responder de forma rápida ou desenvolver melhor, caso queira... Então, começo as provocações com uma sátira de Dostoiévski: se os juízes não existissem, tudo seria permitido?
Não, de jeito nenhum... Na verdade, as sociedades anteriores ao judiciário que a gente conhece – com juízes com capacidade de impor a sua decisão – funcionavam sem juízes e eram muito mais restritivas do que a nossa sociedade. A Grécia Antiga depende de grandes júris para as grandes decisões jurídicas, como o Tribunal do Pitaneu... eles são de representantes da sociedade, eles tem um elemento aristocrático – uma espécie de conselho de sábios – que vai julgar. Então, a Grécia não desenvolveu um direito profissional, com juristas profissionais. Ou seja, os juízes não existiam. E a Grécia é uma sociedade fechada. Você pode pensar na Roma Republicana: por mais que você tenha o Pretor como uma autoridade institucional, o caso é resolvido por um iudex, que vai ser uma espécie de árbitro. Então o Pretor dá uma espécie de resolução em abstrato, mas o procedimento é seguido por um árbitro. E uma das garantias da legitimidade desse árbitro é que ele é escolhido pelas duas partes... ou seja, é um mecanismo que evita uma decisão sobre ‘o que é justo?’ imposta de cima para baixo, pura e simplesmente. E, se você vai para Idade Média, pega a lógica do Ordálio: ‘eu sou julgado pela Natureza ou por Deus, não por uma pessoa’. Então, não acredito que se nós não tivéssemos juízes, tudo seria permitido... se nós não tivéssemos juízes, o direito seria menos autoritário... não a sociedade, mas o direito.
Quem é mais propenso a ir para o inferno: o juiz ou o advogado?
Ah, o juiz, sem dúvida. O juiz tem a posição e a pretensão de realizar a Justiça, e ele o faz por meio da autoridade. Se você pega o Inferno de Dante, a quantidade de pessoas que tentaram agir bem, mas agiram mal, é bem razoável... O direito, principalmente o direito constitucional, não nos protege da pessoa má. Ele nos protege da pessoa que quer ser boa e quer impor o bem. O advogado não permite isso, já o juiz permite.
Quem é mais inútil: o filósofo ou o doutrinador?
Essa não é nem um pouco difícil. O doutrinador. Não serve pra nada, sem dúvida nenhuma. O filósofo, pelo menos, me dá alguma diversão intelectual. Hoje em dia, a pretensão da doutrina, da maneira que a gente conhece, é inútil.
Um filósofo do direito que, se não tivesse existido, não faria a menor diferença?
Rapaz, essa é uma boa pergunta... porque todos eles, à sua maneira, seja de forma mais profunda ou mais rasa, acabaram moldando formas de pensamento. Deixa eu ver se lembro de algum, mas seria um ato de extrema maldade...
É isso que eu quero mesmo, gerar manchete...
Ah, sim, o engajamento... Mas, um filósofo do direito que se não tivesse existido não faria a menor diferença...
Eu sei que você tem implicância com o Dworkin...
Tenho, mas ele faz diferença à sua maneira... ele mobiliza uma forma de pensamento e altera uma atitude jurídica... ainda que eu discorde completamente da filosofia dele.
Pode ser um filósofo brasileiro, professores universitários...
Assim, como filosofia, talvez um Goffredo Telles Jr. Também não vejo grande coisa no Miguel Reale...
O filho ou o pai?
(Voz do além interrompe a conversa): fala dos mortos que é melhor!
O pai, o pai... Mas, tem mais gente, deixa eu ver...
(A mesma voz do além): Tem o Pontes de Miranda, ninguém lê.
Sabe o pior? Os alemães ainda lêem Pontes de Miranda, principalmente civilistas... A sua pergunta é difícil porque a minha mente tende a apagar os inúteis, tem coisa que você começa a ler e desiste. Tem um alemão que criticou o Kelsen no pós-segunda guerra, chamado Gustav Radbruch. Ele era um positivista-legalista e depois volta a ser um jusnaturalista depois da Segunda Guerra. ‘Umbral da Justiça’ é a expressão que ele usa. Apesar de o Alexy citar ele, não vejo graça nenhuma. Não vejo por que perder tempo com ele.
Agora, um livro não-jurídico que você recomendaria para um calouro de direito? Literário, filosófico, que seja...
Tem vários. Acho que é fundamental ler Antígona, sempre insisto; Acho que a gente tem uma falha de boa parte da nossa teoria social, porque a gente ignora alguns autores que são muito importantes. Eu sugeriria a leitura do Ernest Gellner, um dos grandes teóricos da segunda metade do século XX; Umberto Eco... ainda mais hoje com a questão da teoria da interpretação, tanto o Obra Aberta quanto Os limites da interpretação acho fundamentais; E também aqueles autores que são as bases filosóficas de várias teses jurídicas de hoje. Por exemplo, a gente lê o Alexy, mas não lê nem a filosofia analítica e nem a filosofia hermenêutica que está por trás. Então, eu voltaria no pessoal do Círculo de Viena, no Popper, no Gadamer... e um pouco mais de história também.
E na literatura, no teatro, tem algo a recomendar?
Antígona, que serve para os dois; Bertoldo Brecht; Machado de Assis, sem dúvida; Shakespeare, até por uma questão prática, recomendo O Mercador de Veneza e Medida por medida... É difícil escolher um autor, todos tem algum valor. Se for pensar em autores não-jurídicos, para resumir, eu diria: todos os grandes autores. Na verdade, um dos grandes problemas da cultura jurídica é esse: a falta de tempo que a gente tem para ler autores não-jurídicos. Mesmo na filosofia do direito, onde se tem uma pretensão de esgotamento do campo, acaba que a gente não lê os filósofos. Na literatura é a mesma coisa. Obviamente que se tem um valor imenso de Dante Alighieri, de Shakespeare, mas quando você me pergunta ‘um livro não-jurídico’, a primeira coisa que me vem à cabeça é ‘o que estaria mais próximo de uma necessidade propriamente jurídica?’. Gellner me veio a cabeça por conta dos dois textos dele sobre o nacionalismo; Kelsen e Hobsbawm para mim são fundamentais hoje em dia; Ian Kershaw, que é um dos grandes biógrafos do Hitler, tem um livro chamado De volta ao inferno, em que ele faz uma análise das condições que levaram à Segunda Guerra Mundial; Florian Bieber, um cientista político austríaco; Ensaio sobre a dádiva, do Marcel Mouss, acho fundamental que seja lido por estudantes de direito. Ou a Montanha Mágica, do Thomas Mann. Então, assim, todos eles trazem esse contexto de tensão que a gente está vivendo hoje.
Para fechar: há alguma esperança para o jurista que acredita na Justiça?
Se acredita na justiça como elemento racional de realização, não. Se acredita na justiça como ‘Poder Judiciário’, também não. Agora, se acredita na justiça como processo de efetivação de disputas sociais e mediação de decisões que podem ser controladas e alteradas, sim, e isso se chama democracia. Se for qualquer coisa para além disso ou mais restrita que isso, não.
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