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PCC: uma crítica ao sistema carcerário brasileiro

O Direito Penal brasileiro atua mediante a aplicação de alguns princípios em suas normas, princípios estes que são usados para perpetuar os mecanismos constitucionais de promoção da dignidade humana (Constituição Federal art. 1º, III e art. 5 º, XLIX, este último especificamente sobre a condição de presos). Esses princípios, como o da humanidade e da proporcionalidade da pena, ao menos na teoria, estendem sua aplicação, de forma adaptada, a todas as instituições do sistema de justiça criminal. Inicialmente, o sistema penal deveria dispor de ferramentas que reintegrassem o preso à sociedade após o cumprimento da pena, entretanto, tanto há estudos que demonstram a ineficácia do sistema prisional brasileiro quanto sobre as prisões serem ambientes de proliferação do crime e não de resolução/prevenção deste.

No Brasil, a realidade não é sinônimo da teoria no que tange ao sistema carcerário. Apesar de todas as garantias constitucionais, daquelas dadas pela Lei de Execução Penal (acesso à alimentação, assistência jurídica, educação social e religiosa, permissão de visitas em dias determinados) e na Resolução nº 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), abusos são cometidos frequentemente pelos agentes carcerários e pelo Estado. Talvez o maior exemplo de ineficácia do sistema prisional brasileiro seja o surgimento do PCC.

O Primeiro Comando da Capital surgiu em 1993, após uma partida de futebol na Casa de Custódia de Taubaté. Os únicos 8 detentos vindos da capital paulista presentes na unidade prisional formaram um time, o qual deram o nome de Comando Capital, e com ele venceram o campeonato interno. Ligados pelas mesmas raízes e perseguidos dentro da unidade prisional por serem da capital, decidiram criar uma facção para se proteger dos demais detentos e evitar abusos vivenciados naquela unidade, pensando principalmente no Massacre de Carandiru (existe uma publicação neste jornal especialmente sobre ele), ocorrido apenas um ano antes.

Ao passo que os membros foram sendo transferidos, a facção se espalhou pelo Brasil e pelo mundo, algo possível especialmente por apoio de pessoas fora das prisões, de dentro de setores da economia formal, e com a facilidade tecnológica de comercializar ilícitos e da categorização de novas formas de delitos. A facção se consolidou sob o lema “Paz, Justiça e Liberdade” e em razão de seus rigorosos procedimentos internos, bem como a hierarquia bem delimitada. Em maio de 2006, o PCC mostrou sua força, cada vez maior, ao provocar a morte de 50 agentes da segurança pública, dentro e fora das unidades prisionais.

A violência institucional frente a população carcerária, e isso envolve medidas práticas que vão contra os princípios que deveriam reger o sistema criminal, como a privação de alimentos ou a produção destes de forma a se tornarem inconsumíveis pela falta de qualidade (a exemplo de recente relatório realizado na Papuda) e o uso de violência policial nas cadeias, para além do que o monopólio do uso da força permite, entre tantos outros exemplos, constituíram motivações para que os detentos se unissem, criando grupos que uniam o objetivo de sua proteção contra a possibilidade de uma nova chacina e um rancor coletivo contra o aparato estatal. O fato de ele ter se espalhado por praticamente todas as cidades brasileiras demonstra que as falhas e a violência do sistema são um fenômeno não isolado, que abrange todas as unidades prisionais, assim como o sentimento de ódio. As notícias que surgem no que tange à atuação policial demonstram que suas ações são voltadas muito mais à execução que à detenção de presos. Não apenas de presos, mas também de civis que habitam regiões periféricas.

Nesse sentido, a atuação arbitrária de funcionários em geral das unidades prisionais fez com que fosse gerado, entre os detentos, o sentimento de pertencimento a facções como o PCC, por serem grupos que compartilham do mesmo sentimento de revolta contra agentes estatais. Ainda, enxergam nesses grupos possibilidade de proteção e segurança, algo que não é compatível com o tratamento que esperam do Estado. É claro que nesse âmbito, entraríamos em uma discussão muito mais profunda, como a relação entre desigualdade social, negligência estatal (especialmente no que tange ao acesso a direitos sociais) influência social, tanto externa quanto interna aos presídios, e o começo no mundo do crime, algo que pode ser esmiuçado em uma publicação posterior.

Por fim, vale a pena ressaltar o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), criado inicialmente como uma forma de combate ao PCC. O RDD foi criado em 2001 como um regime mais rigoroso de cumprimento de pena, limitando ainda mais o acesso do preso ao mundo exterior e ao convívio com outros detentos. Contudo, esse regime atua mais no sentido de assegurar legitimidade e satisfação da população em relação a segurança pública e aos políticos eleitos que uma medida efetiva. Isso porque a ideia de liderança entre as facções transcende, muitas vezes, a presença física dos integrantes, uma vez que, quando colocados nas celas individuais, os presos passam a adquirir um status ainda maior de rebeldia e insubmissão ao poder estatal, legitimando ainda mais seu poder e autoridade.

Sobre o tema, Marcola, um dos líderes do PCC disse, na CPI do Tráfico de Armas:

[...]intimidação nunca funcionou em São Paulo. Se funcionasse... O exemplo maior de intimidação é esse aqui. O cara vem para cá e fica 1 ano sem ter relações sexuais com sua esposa, fica 1 ano sem ver uma televisão, no mínimo. Fiquei 2 anos na última vez. A gente fica... quer dizer, não só eu, como todos. A maioria que passa aqui volta, não fica com medo de voltar para cá, nem para a Federal nem para lugar nenhum. Esse tipo de forma de resolver o problema é mentira, paliativa. Não vai resolver. Vai jogar uma areia no olho da sociedade, no momento, falando: “Olha, resolvemos o problema penitenciário, colocando a penitenciária mais rígida do mundo”. Não vai resolver, porque vão caber quantos presos naquela penitenciária? Duzentos? E os outros milhares que estão por aí? Então vai fazer no sistema todo aquele tipo de penitenciária. Tudo bem. Você vai criar o quê? Um monte de monstros, um monte de pessoas revoltadas que não vão se intimidar também. Não acredito que o preso se intimide com essas leis que querem coibir, através da força, da repressão. Está errado, acho que, primeiro, então, teria que se dar condições dignas para o preso [...]

Assim, existe um longo debate sobre se o RDD contraria ou não o art. 5 º, XLIX da Constituição, pelos seus efeitos psíquicos e, por muitas vezes, ser feito de forma informal e sem decisão judicial.

Em vista do apresentado, percebe-se que a política humanizante do sistema prisional ficou restrita ao papel. Com certeza existem diversos fatores que levam a formação de uma associação criminosa, mas a violência institucional e os mecanismos cada vez mais repressivos são fatores que não só influenciam esse processo, mas ajudam a consolidá-lo. A teoria do sistema carcerário, se aplicado na íntegra, poderia de fato ser efetiva, mas na prática envolve fatores sociais, como a crença de que “bandido bom é bandido morto” e a desumanização dos presos, uma noção estrutural muito mais difícil de ser solucionada. O aparato repressivo faz surgir mais violência, não coíbe a já existente.

 

Bibliografia:


BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Tráfico de Armas. Depoimento de Marcos Willians Herbas Camacho (Marcola). Brasília: Câmara dos Deputados, 8 jun. 2006. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/20060708-marcos_camacho.pdf. Acesso em: 5 abr. 2025.​

CASEL, Sarah Marliere; ESTEVAM, Maria Eduarda Miscoli. Sistema prisional brasileiro: a ineficiência perante sua proposta. Juiz de Fora: Faculdades Integradas Vianna Júnior, 2017. Disponível em: https://www.jornaleletronicofivj.com.br/jefvj/article/download/41/41/81. Acesso em: 5 abr. 2025.​

DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. 2011. 254 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-16082011-154530/pt-br.php​. Acesso em: 5 abr. 2025.​

HELAL FILHO, William. A fundação PCC depois de uma partida de futebol entre presos. O Globo, Rio de Janeiro, 3 jun. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/blog-do-acervo/post/2024/06/a-fundacao-pcc-depois-de-uma-partida-de-futebol-entre-presos.ghtml. Acesso em: 5 abr. 2025.

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