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Big Data da Barbárie: O Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais 

Após ser condenado a mais de 170 anos de prisão, Carlos Edmilson da Silva foi inocentado pelo Superior Tribunal de Justiça. Antes disso, Carlos havia cumprido 12 anos de prisão por crimes contra a dignidade sexual. Conhecido como “Maníaco da Castello Branco”, sua condenação baseou-se nas palavras da vítima — sem as formalidades legais exigidas — e em relatos de policiais que associaram seu nome a crimes semelhantes.

À época, a defesa denunciava a fragilidade da condenação baseada exclusivamente no reconhecimento. A resposta da acusação? “O que mais existe nesse país são condenações de estupradores e ladrões com tipo físico e rosto comum. Poucas devem ser as vítimas estupradas pelos sósias do Brad Pitt, do Daniel Craig e do George Clooney.”

Não é forçoso concluir que o impacto à sua reputação foi devastador. Um equívoco do poder repressivo do Estado não só cerceou a liberdade de um inocente por doze anos, como também o alcunhou de maníaco. Os danos à sua reputação são inimagináveis — mesmo à época, quando o Código de Processo Penal ainda assegurava o segredo de justiça nesses casos. 

Hoje, contudo, o cenário é ainda mais preocupante. A partir da Lei 15.035/2024, o que antes era exceção se torna regra: o Estado, ao invés de proteger os envolvidos, antecipa a punição por meio da publicidade automática e irrestrita de dados pessoais e imputações penais.

A Constituição prevê, em seu art. 5°, Inciso LX, que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Em atenção à previsão de restrição, o Código de Processo Penal estabelecia que os crimes contra a dignidade sexual correriam em segredo de justiça. Isso porque o “escândalo do processo” tende a agravar os danos psicológicos da vítima, além de apresentarem risco à dignidade do acusado, cuja inocência é presumida até que haja o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Ao fim de 2024, entrou em vigor a referida Lei 15.035/2024, alterando o artigo 234-B do Código Penal, que passou a prever a criação do Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais. Agora, a partir da condenação em primeira instância - ou seja, antes mesmo do trânsito em julgado - nome, CPF e imputação penal de pessoas acusadas de crimes sexuais se tornam públicas e de fácil acesso à população, em atenção ao §1°. 

A lei também prevê que o sigilo será restabelecido caso a condenação seja revertida em instância superior. Ufa! É claro que, em uma sociedade onde a presunção de inocência é sempre respeitada, a reversão da condenação será imediatamente acompanhada da mesma publicidade dedicada à exposição inicial — afinal, o sigilo restaurado tem o mágico poder de apagar o linchamento público.

Além de instaurar um regime de punição extrajudicial antecipada, o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais viola os pilares do Estado Democrático de Direito. A começar pela presunção de inocência, consagrada no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. Ao tornar públicos nomes, CPF e imputações penais de pessoas condenadas em primeira instância — ou seja, ainda sem decisão definitiva —, a Lei 15.035/2024 atribui peso de coisa julgada a uma decisão precária, sujeita à revisão.

É a máquina estatal se tornando agente de difamação institucionalizada. A condenação inicial passa a bastar para que o indivíduo seja banido simbolicamente do convívio social, com efeitos que se mantêm mesmo após eventual absolvição. O restabelecimento do sigilo, previsto na própria lei como medida de correção, não apaga reportagens, capturas de tela nem julgamentos morais — esses, mais rápidos que qualquer apelação.

E, mesmo depois de uma decisão definitiva, quando o Estado chancela a exposição pública de dados sensíveis, está reduzindo o indivíduo a sua acusação, despersonalizando-o. O réu se torna um estigma ambulante — o predador, o monstro, o inimigo, violando sua dignidade.

O direito penal de um Estado de Direito, que aspira formar cidadãos conscientes e responsáveis, não deve ser instrumento da vingança da multidão anônima. É claro que o Estado deve punir e, para isso, está a pena. Porém, para que o controle penal não seja um puro instrumento de dominação, o Estado possui o dever de evidenciar todo o irracional, afastá-lo e exibi-lo como tal para que seu povo tome consciência e se conduza conforme a razão.

O Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais, antecipando o juízo de culpabilidade e expondo indivíduos ainda em litígio judicial, abre mão dessa razão em prol do clamor público. Sob o pretexto de proteger, vulnerabiliza. Disfarçado de justiça, executa-se a vingança. A democracia, porém, não se mede pela intensidade com que pune seus réus, mas pelos limites que impõe ao próprio poder de punir. 

A partir do momento que o Estado abandona seus princípios para agradar o clamor, deixa de ser Estado de Direito e se aproxima do autoritarismo. Ou reafirmamos as garantias fundamentais — ainda que sejamos tomados pelo impulso de punir — ou renunciamos, de vez, àquilo que nos separa da barbárie.


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