Medida por medida - uma análise penal de Shakespeare
- Valentina Menezes
- 21 de mai.
- 6 min de leitura
Crime versus moral, puro versus pecador, lei versus paixão. Essas e outras batalhas integram o palco de Medida por Medida, uma peça escrita por Shakespeare e publicada em 1604. Mas que sentidos podem ser atribuídos aos seus diálogos, do ponto de vista jurídico criminal, ou melhor, o que sua trama traz de interessante ao Direito Penal século XXI?
O dramaturgo inglês constrói a narrativa dessa obra no cenário de Viena e escolhe, como tema central, o crime de sexo pré-marital, previsto na lei da época com o fim de reduzir as práticas de prostituição. Os cinco atos contam a história de um Duque que, ao supostamente se ausentar da cidade por uma missão diplomática, deixa em seu lugar Ângelo, um homem de sua confiança, que considerava virtuoso, para resgatar os valores daquela sociedade corrupta. Durante seu mandato, Cláudio, um “cidadão de bem”, engravida Julieta, a mulher pela qual era apaixonado e com a qual iria se casar. Cláudio recebe, então, a pena de morte por decisão de Ângelo, e pede ajuda à sua irmã, a quase freira Isabela, para que recorra da decisão e interceda por ele. Após ser confrontado por Isabela e ter condenado moralmente a conduta de Cláudio, Ângelo, atraído pela irmã do réu, pede sua virgindade em troca da reforma da sentença. Isabela se nega a fazê-lo e, quando Cláudio descobre, implora a ela que o faça para salvá-lo da morte. Sua irmã não muda de ideia e defende que “os irmãos passam, a pureza dura” (SHAKESPEARE, 2017). O Duque, nesse ínterim, disfarçava-se de monge para observar, à distância, as decisões de Ângelo, de modo que assim descobriu a proposta feita por ele à Isabela. Para salvar sua honra, assim como a vida de Cláudio, o falso monge sugere à Isabela que simule aceitar a proposta do substituto, marcando um encontro às escuras, ao qual ele mandaria Mariana, a mulher com quem Ângelo iria se casar, em seu lugar para se deitar com ele. A ideia desse plano era a de chantagear Ângelo, haja vista que se viesse à tona, essa história o comprometeria. Apesar de tudo, o regente ainda pede a cabeça de Cláudio, mas o Duque o engana novamente enviando-lhe a cabeça de outro homem, que havia morrido de causas naturais. Ao final da peça, Ângelo atua como juiz de seu próprio caso e se auto condena, por pressão do Duque, que reassume sua posição e resolve perdoar tanto a Cláudio, quanto ao novo regente, por seus crimes.
A primeira questão que se pode trazer ao debate, a partir dessa narrativa, é aquela relacionada à finalidade da pena. Diante da decisão de Ângelo pela condenação de Cláudio à pena de morte, que objetivava fazê-lo servir de exemplo aos demais “fornicadores” de Viena e reforçar o respeito à lei, é possível dizer que seu fim é preventivo geral negativo, haja vista que se apoia no medo e na coerção para legitimar o Direito (CARMONA, 2018). É isso que se extrai da argumentação do regente em resposta ao recurso feito por Isabela, quando ele diz, por exemplo, que “Para pôr medo às aves de rapina não podemos fazer um espantalho da lei, com a mesma forma de sempre; acabam transformando-a em poleiro, sem receio mais revelarem” (SHAKESPEARE, 2017). Quando condenar o réu se torna necessário para o bem moral da sociedade, surge o dilema da instrumentalização do indivíduo como meio para a ameaça coletiva, em que a punição deixa de visar à justiça do caso concreto e passa a ser mero espetáculo de advertência social.
Esse problema, na obra, ainda se amplifica, afinal a referida lei utilizada como fundamento da condenação de Cláudio estava “dormida”, isto é, não era aplicada havia mais de uma década. A violação do princípio da dignidade humana, portanto, ganha mais uma faceta diante da aplicação de pena sem previsão em lei anterior ao fato, considerando a revogação tácita da lei da fornicação, o que surpreendeu Cláudio ao se ver condenado por um ato que sequer sabia que era criminoso (CORREA, 2022).
Uma outra questão que nos permite refletir enquanto estudantes e profissionais do Direito é a da simbologia dos personagens. É possível perceber que a figura de Ângelo é construída como a personificação da tentativa de imparcialidade do juiz. Ele deixa claro, assim como Montesquieu, que seu papel como juiz é ser a “boca da lei” e, portanto, crê que basta aplicá-la rigidamente ao caso concreto, sem necessidade de adequação. Já a figura do Duque é seu oposto, uma vez que peca no excesso de parcialidade, deixando de cumprir as leis que ele mesmo instituiu durante anos e aproximando-se de uma das partes do processo durante a investigação. O que ambos têm em comum, no entanto, é a corrupção e a hipocrisia, uma vez que condenam a imoralidade alheia sem reconhecer a própria, seja pelo cometimento do mesmo crime que Cláudio, no caso de Ângelo, seja pelo uso de uma estratégia política desonesta para se reerguer, no caso do Duque, que se ausenta do cargo deixando um regente duvidoso em seu lugar para criar uma crise, em vez de se preocupar com a alteração das leis vigentes (CORREA, 2022).
Essas duas figuras distanciam-se de Isabela e Escalo, o braço direito do Duque e personagem secundário no enredo. Ambos são símbolo da junção entre o respeito à lei e a proporcionalidade, pois, enquanto a primeira pede uma pena mais branda ao irmão, apesar de reconhecer sua culpa de acordo com o tipo penal pelo qual é acusado, o segundo demonstra ter conhecimento técnico e atua como a balança da justiça, assumindo uma posição equidistante das partes, própria do devido processo legal (CORREA, 2022).
De fato, a obra é uma verdadeira aula sobre o papel do juiz no processo penal e nos permite pensar a aplicação da pena no modelo de sistema acusatório, a partir de seus personagens maniqueistas. Ao nos depararmos com a ação penal iniciada de ofício pelo julgador da trama, por exemplo, notamos um atropelamento de princípios constitucionais pertencentes ao cenário jurídico-legal brasileiro, o que nos faz – ou deveria fazer – sentir falta da salvaguarda das liberdades individuais e do controle da legalidade do exercício do direito de punir, próprio do nosso sistema (JACKSON, 2005). Pensando nisso, o que se extrai da peça é a conclusão de que o protagonismo judicial destoa do Estado Democrático de Direito, ao inviabilizar o sistema acusatório pela parcialidade da figura do juiz. Uma leitura constitucional da obra permite enxergar, portanto, que a situação ideal para o caso de Cláudio seria o meio termo entre Ângelo e o Duque, ou seja, um sistema em que a imparcialidade e a legalidade do juiz servisse de freio à sua arbitrariedade, assim como defendia Beccaria, em Dos delitos e das penas (MENDONÇA FILHO; JABORANDY, 2019).
Para além das questões mencionadas, um sem-número de debates poderiam ainda ser levantados a partir da mesma história: a discussão sobre a separação dos poderes, concentrados nas mãos da figura do Duque; a ideia de bom e mau governo; a aplicação e os limites da interpretação legal; a vigência da lei no tempo; o matrimônio como forma de punição no Direito antigo; a efetividade das finalidades das penas; entre outros temas. O próprio título da produção nos deixa à sombra de uma dúvida pertinente até hoje no que diz respeito ao processo penal: Medida por Medida é sobre bom senso e ética no julgar ou sobre vingança e sobreposição da retributividade em relação à prevenção, no que diz respeito à função da pena? Assim, desde o título, a peça é capaz de instigar o questionamento sobre o modelo de sistema criminal brasileiro e sobre as fronteiras do ativismo judicial diante da Constituição Federal de 1988. Essa e outras indagações são vantagens filosóficas proporcionadas por essa viagem shakespeariana na História e no presente, cuja leitura é recomendada a todos os públicos.
Referências
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, Grupo Coquetel. 2017.
CORREA, Emilia Jocelyn-Holt. La balanza de la justicia: lecciones jurídicas shakespearianas en Medida por Medida. Santiago, Chile: Dosier Derecho, Literatura e Historia: los símbolos de la justicia, 2022.
CARMONA, Paulo Afonso Cavichioli; CARMONA, Flávia Nunes de Carvalho Cavichioli. Prevenção especial negativa da pena: o terreno fértil para a implementação e difusão da lógica atuarial no subsistema jurídico-penal. Brasília, DF: Revista Brasileira de Políticas Públicas, 2018.
MENDONÇA FILHO, A. H.; JABORANDY, C. C. M. Medida por medida? O protagonismo judicial, o receio de Beccaria e o processo penal como instrumentalidade constitucional. ANAMORPHOSIS - Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 253–275, 2019.
JACKSON, John D. The effect of human rights on
criminal evidentiary processes: towards convergence, divergence or realignment? The Modern Law
Review. Oxford: Blackwell Publishing, 2005, pp. 737-764.
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