Delinquente nato, desviado ou produzido? Uma análise criminológica de O Estrangeiro (1942)
- Valentina Menezes
- 17 de abr.
- 5 min de leitura
Antes de responder à pergunta do título, vale a pena discutir o porquê de sua formulação, a título de premissa. O que tem a ver a Literatura com o Direito, ou – para os mais pragmáticos – o que há de “útil” em pensar essa relação? A ficção escrita, assim como as leis, a jurisprudência, e a doutrina, é fonte para a reflexão jurídica, por trazer costumes e interpretações de recortes temporais e locais dentro das sociedades (OLIVEIRA, 2020). Propor análises jurídicas sobre textos literários é, portanto, um exercício válido, não só por permitir imaginar e reimaginar cenários passados, presentes e futuros, mas também pelo fato de o Direito e a Literatura serem linguagem e existirem pela própria linguagem, com temas comuns (MARTINS-COSTA, 2011). Dito isso, entre as várias “lentes” criminológicas possíveis de serem usadas para interpretar O Estrangeiro, de Albert Camus, escolhemos, aqui, três – o Positivismo Penal, o Labelling Approach e a Criminologia Cultural – a fim de tentar atender ao questionamento inicial.
Nesse primeiro romance de Camus – e, segundo o crítico literário Roland Barthes, também o “primeiro romance clássico do pós-guerra” – conhecemos a história de Meursault, um homem francês do século XX que, um dia, mata um árabe em uma praia em Argel (CAMUS, 2024). O livro traz a visão apática de mundo do protagonista nos momentos antes e depois do assassinato, mas o elemento mais interessante do enredo, especialmente para nós, estudantes e profissionais do Direito, é o seu julgamento.
No que diz respeito à síntese dos fatos, Meursault é julgado pelo crime de homicídio cometido contra um homem que estava envolvido em um conflito com um de seus vizinhos, seu amigo Raymond. A vítima teria perseguido e ameaçado Raymond, situação que levou Meursault a pedir a arma de fogo de seu vizinho emprestada, para protegê-lo. No momento dos fatos, no entanto, o protagonista estava sozinho em uma praia com a vítima, que não apresentou indícios de injusta agressão ou ameaça contra ele. Disparou cinco tiros que lhe causaram a morte e, em sede de interrogatório, não soube explicar sua motivação. Ao final do julgamento, Meursault foi condenado à pena de morte (CAMUS, 2024).
As condições que justificaram tal condenação é que são as bases para a reflexão centrada na criminologia. Desde a instrução, percebe-se que a sentença do protagonista já havia sido determinada devido a dois principais aspectos subjetivos do acusado: sua descrença em Deus e o fato de que se mostrou apático no enterro de sua mãe, ocorrido semanas antes do crime, por não ter chorado e por ter convidado sua amante ao cinema após o enterro. Durante a oitiva de testemunhas e o interrogatório, tanto o promotor quanto o juiz traçavam perguntas para estabelecer um nexo causal entre esses elementos e o crime cometido. É nessa abordagem que entra o Positivismo de Lombroso – ou o Direito Penal do Autor – uma vez que essa teoria biocriminológica defende a ideia do “criminoso nato”, julgando o criminoso por quem ele é, e não pelo que cometeu, como ocorre com Meursault, diante das “provas de sua insensibilidade” (ROCHA; SOTERO; TOURINHO, 2021). Camus ainda explora essa postura jurídica de forma crítica, ao narrar atitudes reativas do protagonista diante das menções do juiz de instrução à sua apatia no enterro da própria mãe: “Comentei que essa história não tinha nenhuma relação com o meu caso, mas ele me respondeu que era óbvio que eu nunca me envolvera com a justiça” (CAMUS, 2024). Posteriormente, o promotor ainda assume que o acusa “de ter enterrado a mãe com um coração de criminoso”, já que esse fato e o crime possuem uma relação “profunda, patética, essencial” (CAMUS, 2024). Na lógica da corrente positivista, sua sentença é ideal, afinal, para essa corrente, quem não podia ser corrigido, deveria ser eliminado (ANÍTUA, 2019).
Essa escolha de representação do julgamento feita pelo autor, inclusive, parece contrastar a visão positivista, dos juristas, com uma visão, até certo ponto, alinhada à Escola Clássica, de Beccaria, por parte do próprio Meursault, já que este defende a ideia do livre arbítrio e do destino como consequência dos atos de cada indivíduo (ANÍTUA, 2019).
O que se observa, também pela apreciação dos mencionados aspectos subjetivos do protagonista, é que sua condenação se deu com base naquilo que a sociedade em que ele se inseria julgava como “desvio”. Essa conclusão alinha-se à teoria do Labelling Approach ou Reação Social, de Sutherland, segundo a qual a justiça é seletiva por atuar em desfavor de determinados indivíduos “etiquetados” ou “rotulados” como desviantes em relação às regras sociais impostas por determinado grupo (ANÍTUA, 2019). O próprio título O Estrangeiro, ou The Outsider, em inglês, faz, ao mesmo tempo, alusão à ideia de que Meursault não se encaixa às normas sociais da comunidade em que se encontra, e à obra Outsiders, de Howard Becker, sociólogo do etiquetamento social (ANÍTUA, 2019).
Segundo a lógica dessa corrente, portanto, o promotor do julgamento de Meursault, figura de poder dentro desse cenário jurídico por estar conectada ao controle social, considerou a apatia do personagem como desobediência às normas morais, que exigiriam a emoção do luto, o que determinou um estigma sobre ele e o levou à condenação (OLIVEIRA, 2020). A crítica de Camus, aqui, pode ser entendida como a convicção de que a justiça trabalha de forma distinta em relação a sujeitos específicos.
Por fim, é possível observar o diálogo da obra com as noções da Criminologia Cultural. Isso porque essa corrente defende que tanto a subjetividade do agente, quanto as emoções envolvidas nas práticas delitivas devem integrar as investigações criminológicas, partindo da ideia de que o crime é resultado de uma teia de interações sociais (JUNIOR; CARVALHO; LINCK, 2022). Considerando que a filosofia do absurdo, tema central da obra, pode ser considerada uma ansiedade existencial surgida após a Segunda Guerra Mundial, a Criminologia Cultural serviria como instrumento de estudo de caso. Nessa lógica, Meursault poderia ser considerado “produto” de seu tempo, o que seria, talvez, uma das análises mais polêmicas que se pode extrair da obra, pelo debate sobre uma possível impunidade diante de um crime fútil contra a vida.
Feitas essas considerações, o que se percebe é que, para além da filosofia do absurdo, Camus proporciona uma reflexão sobre quem ocupa o banco dos réus. É possível observar, na narrativa, críticas relacionadas tanto ao fato de que Meursault é julgado por sua indiferença, traço de sua personalidade, em vez do crime cometido; quanto à seletividade do sistema criminal. Nesse sentido, todas as descrições da delinquência, na indagação do título deste ensaio, são possíveis, a depender da ótica criminológica utilizada para análise. Para todas elas, no entanto, o princípio – presente durante todo o desenrolar da história – é o mesmo: a recusa de Meursault quanto ao conformismo em relação à lógica dos tribunais e da sociedade. E o que se conclui desse princípio – e da meditação sobre ele – é que as falhas da máquina judiciária atravessam não só fronteiras, como o próprio tempo, já que tomamos por base, aqui, um livro de mais de 80 anos de idade.
Recomenda-se, é claro, a leitura desse romance filosófico, para outros insights jurídicos, dentro ou fora da criminologia.
Referências
ANÍTUA. Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan. 944 p. 2019.
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek. 63ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2024.
JUNIOR, Salah Khaled; CARVALHO, Salo de; LINCK, José Antônio Gerzson. A Criminologia Cultural e sua recepção no Brasil: relato parcial de uma história por ser escrita. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol 193. São Paulo: Ed. RT, 2022.
MARTINS-COSTA, Judith. Direito e literatura, linguagem. In: Adeodato, João Maurício; Bittar, Eduardo. Filosofia e teoria geral do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2011.
OLIVEIRA, Iago Morais de. “I accuse this man of burying his mother with crime in his heart”: por uma análise de “O Estrangeiro” de Albert Camus à luz da teoria do Labelling Approach. Trabalho de Conclusão de Curso (Direito). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa. 120 p. 2020.
ROCHA, Pedro Vitor Brito Sarmento; SOTERO, Ana Paula da Silva; TOURINHO, Luciano de Oliveira Souza. O Estrangeiro: a aplicação do Direito Penal do Autor na obra de Albert Camus. Porto Alegre: Editora PUCRS, 2021.
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