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A Inteligência Artificial na Tradução Legal: Inimiga ou Aliada?

O debate sobre o uso de inteligência artificial (IA) na prática legal e suas  consequências no mundo jurídico tem tomado espaço no Brasil, nos últimos anos, desde  em pequenos escritórios de advocacia, com discussões sobre o aprimoramento da gestão  e da pesquisa jurídica, até no Supremo Tribunal Federal, com debates acerca do  constitucionalismo contemporâneo. Há, no entanto, uma área fundamental do Direito,  sobretudo do Direito Internacional, que tem sido deixada de lado nessas constantes  conversas sobre o futuro jurídico diante dos avanços tecnológicos: a tradução legal.  

Seja pelo desprestígio da profissão de tradutor, seja pela excessiva confiança nas  chamadas ferramentas de tradução assistida por computador, é notório o descaso com  essa ferramenta jurídica, que se manifesta tanto academicamente, com a carência de  traduções de textos de novas áreas de pesquisa, como a criminologia cultural, por  exemplo, quanto na prática jurídica, com o prejuízo da ampla defesa em processos  judiciais em que se tem utilizado a IA para a tradução de provas orais e documentais, para  além da dificuldade de acesso a leis e jurisprudências de certos países. Mas, será que a  simples introdução da inteligência artificial nesse campo é o suficiente para suprir as  demandas da exportação e importação de conhecimento jurídico, permitidas pela  tradução? 

É certo que nem todas as áreas do Direito dependem diretamente da tradução  jurídica no contexto diário, técnica normalmente mais reservada aos escritórios de  advocacia com clientes estrangeiros e ao ramo do Direito Internacional público e privado,  por exemplo. Mas o que se observa é que as ocasiões em que a tradução é essencial aos  profissionais do Direito brasileiro têm aumentado ao longo dos anos. Um exemplo recente  é a recepção de observadores internacionais das eleições municipais de 2024, missões  regulamentadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Tais observadores, convidados de  diversos países para monitorar as eleições brasileiras e contribuir para o aperfeiçoamento  e transparência do processo eleitoral, devem elaborar relatórios finais com pareceres e  recomendações a serem recebidos pelo Brasil, os quais, no caso de observadores não  inseridos na comunidade lusófona, têm passado por processos de tradução. Já sob a  perspectiva privada, tem-se o exemplo do caso Daenerys Targaryen, ocorrido no último  mês, nos Estados Unidos, em que a mãe de um jovem de 14 anos acusou a Character.AI,  empresa que permite que os usuários engajem com personagens gerados por inteligência  artificial, de ter provocado a morte de seu filho. O processo judicial foi instaurado a partir  de alegações de que o chatbot, de nome inspirado na série de fantasia Game of Thrones,  teria induzido o menino ao suicídio, após conversas de cunho sexual e emocional em que  a IA teria correspondido aos sentimentos do jovem. O professor da Escola de Direito da  Universidade de Washington, Ryan Calo, afirmou, diante dessa ocorrência, que o  reconhecimento da negligência no treinamento de modelos de linguagem ampla e da  responsabilização civil só serão possíveis se os tribunais norte-americanos passarem a  entender tais softwares, que imitam o comportamento humano, como produtos. Frente a  impasses desse gênero, é nítido que entender como outros países têm decidido sobre o  avanço da IA em distintos campos sociais, como o da saúde mental, no último caso, é  interessante não só por nos familiarizar com as repercussões jurídicas dessas novas  ocorrências digitais, mas também por nos propor pensar em novas alternativas de lidar  com problemas compartilhados internacionalmente. E, novamente, é a tradução jurídica  que possibilita esse tipo de intercâmbio.  

Situações como as dos dois casos mencionados reforçam que a tradução legal,  hoje, vai além da garantia da validade e da integridade de documentos jurídicos que  atravessam fronteiras, atingindo aspectos cotidianos da vida laboral globalizada do  profissional do Direito. Dito isso, em um mundo em que a necessidade de transpor  tecnicismos legais estrangeiros ao contexto linguístico e jurídico brasileiro, e vice-versa,  é resolvida em poucos cliques no Google Tradutor, ainda é possível falar da figura do  tradutor humano? Mais do que isso, na era da expansão da inteligência artificial, a  pergunta deveria ser: Que papel assume a tradução de máquina na tradução jurídica e  quais são suas limitações? 

Estudos recentes que contrastam a tradução legal humana com aquela feita por  máquinas revelam pontos fortes e fracos de cada um. Um artigo publicado este ano na  Revista Internacional de Linguística, Literatura e Tradução, que se propôs a fazer uma   comparação entre trechos de tradução de contratos e de uma certidão de divórcio feita por  tradutores profissionais humanos e pelas ferramentas Microsoft Bing e Systran Translator  concluiu que a performance da tradução por inteligência artificial está aquém do esperado em termos de precisão. Foram analisados os critérios de competência, linguagem,  conteúdo e estilo, os quais, em todos as comparações, demonstraram que a tradução de  máquina prejudica o efeito legal das cláusulas traduzidas, tanto por desconsiderar o tom  jurídico dos documentos, quanto por suprimir tecnicismos e verbos modais relevantes  para o propósito dos textos, substituindo-os por escolhas vocabulares mais ambíguas. O  estudo apontou, no entanto, que, se alimentada e treinada a partir de uma base de dados  robusta e específica de textos legais, a IA tem potencial de aprender a linguagem do  Direito e superar a tradução humana em cem por cento, o que, por enquanto, não é uma  realidade. 

Outro estudo semelhante, também publicado este ano, na Revista Heliyon, comparou o desempenho de tradutores profissionais com o de três sistemas de inteligência  artificial (GPT 4, ChatSonic e Bing Chat), diante da tradução e versão de contratos entre  o árabe e o inglês. A pesquisa guiou-se pela hipótese de que não haveria diferenças  quantitativas entre o resultado produzido por humanos e por máquinas, mas chegou à  conclusão de que, para além da insuficiência da precisão da IA, existem outras  desvantagens desse tipo de ferramenta no contexto jurídico. As avaliações, feitas por  professores de tradução, demonstraram que a qualidade da tradução de máquina varia de  acordo com a qualidade da escrita do texto base, de modo que, se o contrato original possui ambiguidades, a IA tem dificuldades de inferir o sentido correto com base no  contexto do documento. O que se concluiu foi que, apesar de as habilidades dos modelos  de tradução de máquina estarem aumentando exponencialmente, nos últimos anos,  reduzindo as disparidades em relação à performance humana, há sutilezas do “juridiquês”  que ainda não são dominadas pelos sistemas. 

Um ponto em comum entre as duas pesquisas foi a observação de que a expertise  humana – apesar de também ter seus pontos fracos, como a inconsistência entre traduções  de diferentes profissionais ou de um mesmo profissional em tempos diferentes, para além  da menor velocidade de entrega dos resultados – se destaca pela capacidade de captar  nuances culturais, expressões idiomáticas e figuras de linguagem que podem se perder  em outras formas de tradução. Como exemplo, tem-se o caso da tradução da expressão  “Act of God”, mencionada em uma das cláusulas de contrato da última pesquisa:  enquanto tradutores humanos traduziram-na corretamente para “caso fortuito”,  compreendendo sua referência a desastres naturais, a tradução por máquina, por sua vez,  fez uma substituição literal, o que não foi capaz de abarcar as implicações legais do termo. 

O que se percebe é que, apesar de inevitável a incorporação da tecnologia na  tradução legal, assim como nas demais áreas do Direito, faz-se necessária, ainda, a  expertise humana para o alcance da qualidade e da confiabilidade que a profissão jurídica  requer, haja vista que uma tradução legal ágil e escalável perde a eficácia se feita em  termos imprecisos. Em outras palavras, a conclusão que se pode alcançar é que, apesar de  atender à demanda de tradução rápida, barata e conveniente, em detrimento da qualidade,  o uso da inteligência artificial como única ferramenta de tradução pode se mostrar  adequada aos juristas que não acreditam na necessidade de uma tradução profissional e  preferem arriscar cometer deslizes em seus discursos, mas deve ser evitada ao máximo  por aqueles que prezam pela competência da prática jurídica em um mundo globalizado.  Não se pode deixar de considerar, no entanto, que apenas 5% da população brasileira tem  conhecimento de inglês e que, dessa parcela, apenas 1% é fluente no idioma, o que torna  evidente que o caminho a ser percorrido no aperfeiçoamento da tradução jurídica “amadora” no Brasil é longo. Falar da necessidade de combinar as habilidades humanas  com as de máquina, nesse contexto, é falar de aprimoramento acadêmico, a partir de  cursos de linguagem jurídica em outros idiomas, por exemplo. Mas, até que se alcance  esse cenário ideal, é preciso que o profissional do Direito trabalhe com o profissional da  tradução, antes de trabalhar com o robô. 


Referências 

AL-ROMANY, T. A. H.; KADHIM, M. J. Artificial Intelligence Impact on Human  Translation: Legal Texts as a Case Study. International Journal of Linguistics,  Literature and Translation, 2024. Disponível em: https://www.al 

BRITISH Council. Demandas da aprendizagem de inglês no Brasil. Instituto de  Pesquisa Data Popular, 2014. Disponível em:  

8“Ato de Deus” (tradução livre). 

9 BRITISH Council. Demandas da aprendizagem de inglês no Brasil. Instituto de Pesquisa Data Popular,  2014. Disponível em:  

CRANE, Emily. Boy, 14, fell in love with ‘Game of Thrones’ chatbot — then killed  himself after AI app told him to ‘come home’ to ‘her’. New York Post, 2024. Disponível  em: https://nypost.com/2024/10/23/us-news/florida-boy-14-killed-himself-after-falling in-love-with-game-of-thrones-a-i-chatbot-lawsuit/. Acesso em: 01/11/2024. 

MILLER, Gabby; LENNET, Bem. Breaking down the lawsuit against Character.AI.  over teen’s suicide. Tech Policy Press, 2024. Disponível em:  

MONEUS, Ahmed Mohammed et al. Artificial intelligence and human translation: A  contrastive study based on legal texts. Heliyon, Volume 10, Issue 6, 2024. Disponível  em: https://www.cell.com/heliyon/fulltext/S2405-8440(24)04137-9. Acesso em:  14/10/2024.

TSE. Missões de observação eleitoral. Disponível em:  


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