A Inteligência Artificial na Tradução Legal: Inimiga ou Aliada?
- Valentina Menezes
- 4 de dez. de 2024
- 6 min de leitura
O debate sobre o uso de inteligência artificial (IA) na prática legal e suas consequências no mundo jurídico tem tomado espaço no Brasil, nos últimos anos, desde em pequenos escritórios de advocacia, com discussões sobre o aprimoramento da gestão e da pesquisa jurídica, até no Supremo Tribunal Federal, com debates acerca do constitucionalismo contemporâneo. Há, no entanto, uma área fundamental do Direito, sobretudo do Direito Internacional, que tem sido deixada de lado nessas constantes conversas sobre o futuro jurídico diante dos avanços tecnológicos: a tradução legal.
Seja pelo desprestígio da profissão de tradutor, seja pela excessiva confiança nas chamadas ferramentas de tradução assistida por computador, é notório o descaso com essa ferramenta jurídica, que se manifesta tanto academicamente, com a carência de traduções de textos de novas áreas de pesquisa, como a criminologia cultural, por exemplo, quanto na prática jurídica, com o prejuízo da ampla defesa em processos judiciais em que se tem utilizado a IA para a tradução de provas orais e documentais, para além da dificuldade de acesso a leis e jurisprudências de certos países. Mas, será que a simples introdução da inteligência artificial nesse campo é o suficiente para suprir as demandas da exportação e importação de conhecimento jurídico, permitidas pela tradução?
É certo que nem todas as áreas do Direito dependem diretamente da tradução jurídica no contexto diário, técnica normalmente mais reservada aos escritórios de advocacia com clientes estrangeiros e ao ramo do Direito Internacional público e privado, por exemplo. Mas o que se observa é que as ocasiões em que a tradução é essencial aos profissionais do Direito brasileiro têm aumentado ao longo dos anos. Um exemplo recente é a recepção de observadores internacionais das eleições municipais de 2024, missões regulamentadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Tais observadores, convidados de diversos países para monitorar as eleições brasileiras e contribuir para o aperfeiçoamento e transparência do processo eleitoral, devem elaborar relatórios finais com pareceres e recomendações a serem recebidos pelo Brasil, os quais, no caso de observadores não inseridos na comunidade lusófona, têm passado por processos de tradução. Já sob a perspectiva privada, tem-se o exemplo do caso Daenerys Targaryen, ocorrido no último mês, nos Estados Unidos, em que a mãe de um jovem de 14 anos acusou a Character.AI, empresa que permite que os usuários engajem com personagens gerados por inteligência artificial, de ter provocado a morte de seu filho. O processo judicial foi instaurado a partir de alegações de que o chatbot, de nome inspirado na série de fantasia Game of Thrones, teria induzido o menino ao suicídio, após conversas de cunho sexual e emocional em que a IA teria correspondido aos sentimentos do jovem. O professor da Escola de Direito da Universidade de Washington, Ryan Calo, afirmou, diante dessa ocorrência, que o reconhecimento da negligência no treinamento de modelos de linguagem ampla e da responsabilização civil só serão possíveis se os tribunais norte-americanos passarem a entender tais softwares, que imitam o comportamento humano, como produtos. Frente a impasses desse gênero, é nítido que entender como outros países têm decidido sobre o avanço da IA em distintos campos sociais, como o da saúde mental, no último caso, é interessante não só por nos familiarizar com as repercussões jurídicas dessas novas ocorrências digitais, mas também por nos propor pensar em novas alternativas de lidar com problemas compartilhados internacionalmente. E, novamente, é a tradução jurídica que possibilita esse tipo de intercâmbio.
Situações como as dos dois casos mencionados reforçam que a tradução legal, hoje, vai além da garantia da validade e da integridade de documentos jurídicos que atravessam fronteiras, atingindo aspectos cotidianos da vida laboral globalizada do profissional do Direito. Dito isso, em um mundo em que a necessidade de transpor tecnicismos legais estrangeiros ao contexto linguístico e jurídico brasileiro, e vice-versa, é resolvida em poucos cliques no Google Tradutor, ainda é possível falar da figura do tradutor humano? Mais do que isso, na era da expansão da inteligência artificial, a pergunta deveria ser: Que papel assume a tradução de máquina na tradução jurídica e quais são suas limitações?
Estudos recentes que contrastam a tradução legal humana com aquela feita por máquinas revelam pontos fortes e fracos de cada um. Um artigo publicado este ano na Revista Internacional de Linguística, Literatura e Tradução, que se propôs a fazer uma comparação entre trechos de tradução de contratos e de uma certidão de divórcio feita por tradutores profissionais humanos e pelas ferramentas Microsoft Bing e Systran Translator concluiu que a performance da tradução por inteligência artificial está aquém do esperado em termos de precisão. Foram analisados os critérios de competência, linguagem, conteúdo e estilo, os quais, em todos as comparações, demonstraram que a tradução de máquina prejudica o efeito legal das cláusulas traduzidas, tanto por desconsiderar o tom jurídico dos documentos, quanto por suprimir tecnicismos e verbos modais relevantes para o propósito dos textos, substituindo-os por escolhas vocabulares mais ambíguas. O estudo apontou, no entanto, que, se alimentada e treinada a partir de uma base de dados robusta e específica de textos legais, a IA tem potencial de aprender a linguagem do Direito e superar a tradução humana em cem por cento, o que, por enquanto, não é uma realidade.
Outro estudo semelhante, também publicado este ano, na Revista Heliyon, comparou o desempenho de tradutores profissionais com o de três sistemas de inteligência artificial (GPT 4, ChatSonic e Bing Chat), diante da tradução e versão de contratos entre o árabe e o inglês. A pesquisa guiou-se pela hipótese de que não haveria diferenças quantitativas entre o resultado produzido por humanos e por máquinas, mas chegou à conclusão de que, para além da insuficiência da precisão da IA, existem outras desvantagens desse tipo de ferramenta no contexto jurídico. As avaliações, feitas por professores de tradução, demonstraram que a qualidade da tradução de máquina varia de acordo com a qualidade da escrita do texto base, de modo que, se o contrato original possui ambiguidades, a IA tem dificuldades de inferir o sentido correto com base no contexto do documento. O que se concluiu foi que, apesar de as habilidades dos modelos de tradução de máquina estarem aumentando exponencialmente, nos últimos anos, reduzindo as disparidades em relação à performance humana, há sutilezas do “juridiquês” que ainda não são dominadas pelos sistemas.
Um ponto em comum entre as duas pesquisas foi a observação de que a expertise humana – apesar de também ter seus pontos fracos, como a inconsistência entre traduções de diferentes profissionais ou de um mesmo profissional em tempos diferentes, para além da menor velocidade de entrega dos resultados – se destaca pela capacidade de captar nuances culturais, expressões idiomáticas e figuras de linguagem que podem se perder em outras formas de tradução. Como exemplo, tem-se o caso da tradução da expressão “Act of God”, mencionada em uma das cláusulas de contrato da última pesquisa: enquanto tradutores humanos traduziram-na corretamente para “caso fortuito”, compreendendo sua referência a desastres naturais, a tradução por máquina, por sua vez, fez uma substituição literal, o que não foi capaz de abarcar as implicações legais do termo.
O que se percebe é que, apesar de inevitável a incorporação da tecnologia na tradução legal, assim como nas demais áreas do Direito, faz-se necessária, ainda, a expertise humana para o alcance da qualidade e da confiabilidade que a profissão jurídica requer, haja vista que uma tradução legal ágil e escalável perde a eficácia se feita em termos imprecisos. Em outras palavras, a conclusão que se pode alcançar é que, apesar de atender à demanda de tradução rápida, barata e conveniente, em detrimento da qualidade, o uso da inteligência artificial como única ferramenta de tradução pode se mostrar adequada aos juristas que não acreditam na necessidade de uma tradução profissional e preferem arriscar cometer deslizes em seus discursos, mas deve ser evitada ao máximo por aqueles que prezam pela competência da prática jurídica em um mundo globalizado. Não se pode deixar de considerar, no entanto, que apenas 5% da população brasileira tem conhecimento de inglês e que, dessa parcela, apenas 1% é fluente no idioma, o que torna evidente que o caminho a ser percorrido no aperfeiçoamento da tradução jurídica “amadora” no Brasil é longo. Falar da necessidade de combinar as habilidades humanas com as de máquina, nesse contexto, é falar de aprimoramento acadêmico, a partir de cursos de linguagem jurídica em outros idiomas, por exemplo. Mas, até que se alcance esse cenário ideal, é preciso que o profissional do Direito trabalhe com o profissional da tradução, antes de trabalhar com o robô.
Referências
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8“Ato de Deus” (tradução livre).
9 BRITISH Council. Demandas da aprendizagem de inglês no Brasil. Instituto de Pesquisa Data Popular, 2014. Disponível em:
https://www.britishcouncil.org.br/sites/default/files/demandas_de_aprendizagempesquisacompleta.pdf. Acesso em: 03/11/2024.
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